Segurança

Quase 60% das audiências de custódia no CE resultaram em prisões preventivas; entenda

Procedimento foi implantado em 2015 para verificar a legalidade de prisões e saber se os autuados foram vítimas de tortura

Conhecidas como a “porta de entrada” do sistema prisional, mais de 70 mil audiências de custódia já foram realizadas no Ceará, e resultaram em mais confirmações de prisões do que em solturas. Um total de 57,5% delas (40.458) acabou com conversões de flagrantes em prisões preventivas, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

Até o último dia 17 de abril, em igual período, 29.368 liberdades foram concedidas, enquanto 230 suspeitos foram mandados para recolhimento domiciliar. Em outros 5.732 casos foram reportados episódios de tortura/maus-tratos. Os fatores que influenciam qual decisão será tomada são: gravidade do crime, reincidência, antecedentes, e outros agravantes.

Essas sessões são direito de todas as pessoas presas, seja em flagrante ou por força de mandado de prisão emitido tanto pela Justiça Estadual quanto pela Federal, e foram implantadas em 2015 em todo o Brasil. Em quase dez anos, o CNJ contabiliza mais de 1,5 milhão atos, com liberdade provisória em cerca de 630 mil e 955 mil prisões preventivas. 

Somente no ano passado, 56% das audiências (11.438) no território cearense terminaram em prisões preventivas, enquanto, foram dadas 5.725 liberdades provisórias. 

Legenda: Em quase dez anos, um total de mais de 29 mil liberdades provisórias foram concedidas no Ceará após as audiências de custódia
Foto: Thiago Gadelha

Até 2022, somente os flagranteados passavam pelo ato, mas o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) mudou essa realidade a pedido do CNJ, que realizou uma inspeção em presídios. Passam por audiências de custódia: 

  • Presos em flagrante
  • Presos temporários
  • Presos preventivos
  • Presos recapturados
  • Presos condenados
  • Devedores de pensão alimentícia

Diário do Nordeste acompanhou três audiências de custódia durante uma manhã na 17ª Vara Criminal de Fortaleza do TJCE, conduzidas pela juíza titular Flávia Setúbal, para entender o processo. O momento é feito, geralmente, 24 horas após a prisão. 

Essa cadeia de funcionamento, segundo a juíza, ajudou a solucionar um problema estrutural “massivo” no Sistema Penitenciário brasileiro. Anteriormente, até que uma pessoa presa ficasse na frente de um juiz podia demorar semanas ou até meses. No entanto, esse tipo de audiência não é para decidir sobre condenação ou absolvição, como explica Setúbal. 

Toda pessoa presa, seja em flagrante ou em decorrência de uma ordem judicial cumprida, tem que passar por audiência de custódia. O preso é levado a um ambiente de diálogo na presença da defesa técnica e do Ministério Público. O juiz vai tomar aquela decisão para saber se a prisão foi feita corretamente, se aquele preso vai responder em liberdade, se ele vai ficar preso ou se ele vai ter medidas cautelares alternativas a cumprir

Flávia Setúbal

Juíza titular da Vara de Audiência de Custódia de Fortaleza

Legenda: Flávia Setúbal é uma das juízas titulares da Vara de Audiência de Custódia em Fortaleza, e defende a importância do ato para resolver problemas do sistema prisional, como superlotação
Foto: Thiago Gadelha

COMO FUNCIONA A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA?

O Conselho Nacional de Justiça descreve as etapas: “O juiz analisa a prisão sob o aspecto da legalidade e a regularidade do flagrante, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão, de se aplicar alguma medida cautelar e qual seria cabível, ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. A análise avalia, ainda, eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades”.

Especificando, um policial militar (PM) leva o preso até a sala de audiência e o juiz dá início ao rito. O magistrado explica o processo à pessoa e começa uma série de questionamentos como profissão, estado civil, e possíveis problemas de saúde. É o momento também onde a pessoa presa pode relatar se sofreu algum tipo de violência ou tortura no momento da captura e até chegar na audiência. 

Legenda: Na audiência, a pessoa presa responde questionamentos sobre sua vida e sobre as condições nas quais foi capturada. Depois, a acusação e a defesa dão seus pareceres sobre a prisão preventiva ou liberdade provisória
Foto: Thiago Gadelha

Seguir esses passos é essencial, conforme a juíza Flávia Setúbal, para “prevenir e combater” a violência policial, por exemplo.

“O juiz antes fazia a decisão da prisão com o relato unilateral da Polícia. Hoje se leva em consideração o próprio relato do preso. Ganhou rosto aquilo ali que antes era só folha de papel. A gente leva em consideração a fala do promotor de Justiça e a fala da defesa técnica para a gente ter mais substrato para dar uma decisão mais correta. Analisamos a questão da violência policial, como que o ele chegou, se ele tem marcas de tortura…”, pondera a magistrada.

Nas três audiências que o Diário do Nordeste acompanhou, não houve nenhum relato de violência. Eram três homens custodiados, e entre eles somente um ficou preso preventivamente, pois foi capturado em posse de uma arma de fogo enquanto ainda cumpria regime semi-aberto e usava monitoramento eletrônico por uma condenação anterior pelo mesmo crime.

Nesse caso, a promotoria solicitou que ele fosse encarcerado pela reincidência, enquanto a defesa pediu liberdade, pois não foi um crime com potencial grave. A juíza acompanhou o parecer da do MP. Após essa decisão, a pessoa é enviada diretamente para o Sistema Penitenciário, pois conforme a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização (SAP) pessoas presas não são mais mantidas em delegacias desde 2019. 

A atuação do MPCE é feita por meio da Secretaria Executiva das Promotorias de Justiça de Audiência de Custódia de Fortaleza. Em nota, o órgão reiterou que “são analisados a legalidade da prisão em flagrante, os indícios de autoria do réu e a materialidade do crime, que se trata do conjunto de provas tangíveis que atestam a existência de um delito”. 

O Ministério Público diferenciou ainda o procedimento no caso de cumprimento de mandados de prisão: “A audiência terá como objetivo examinar se, no momento em que o réu foi detido, houve algum tipo de violência. Encerrada a audiência, o auto de prisão em flagrante é distribuído para as varas criminais e especializadas, a fim de que os promotores de Justiça e o Juízo atuantes na área adotem as providências cabíveis”. 

GARANTIA DE DIREITOS 

A implantação das audiências de custódia no Brasil, apesar de só ter sido feita há quase 10 anos em cumprimento à Resolução CNJ nº 213/2015, já era prevista em pactos e tratados internacionais de Direitos Humanos, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Segundo Leandro Vasques, advogado criminalista e Mestre em Direito pela UFPE, o sistema atual “ostenta a importância fundamental de aperfeiçoar a observância das garantias constitucionais” e valoriza os seguintes aspectos: 

  • prevenção a abusos e tortura; 
  • avaliação judicial célere acerca da legalidade e da necessidade de se manter alguém preso; 
  • redução da superlotação carcerária pela análise criteriosa de cada caso concreto;
  • oportunidade de avaliação das condições de saúde, sociais e familiares da pessoa presa;

O advogado pontua que nesse período já foram coletados mais de 120 mil relatos de tortura e maus tratos. “Trata-se de um número expressivo de situações de prisão em que, de forma célere e direta, o Poder Judiciário examinou os mais diversos aspectos relacionados às garantias constitucionais”, avalia.

A juíza Flávia Setúbal pontua que o momento é importante para garantir os direitos de pessoas presas e, quando cabível, encaminhá-los para programas sociais, como pessoas em situação de rua e usuários de drogas. Em duas das audiências acompanhadas pela reportagem, a magistrada deu um encaminhamento para tratamentos no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps AD). 

Esses dois autuados ganharam liberdade provisória. Um deles havia sido preso por tráfico de substâncias ilícitas, mas como era réu primário e tinha bons antecedentes, além de portar uma quantidade pequena de entorpecentes, o próprio MPCE sugeriu a liberação, com cumprimento de medidas cautelares. 

O outro era um homem em situação de rua que era preso pela segunda vez em 10 dias por furto de fios, além de ser usuário de drogas. O promotor de justiça deu parecer favorável a prisão preventiva, mas a Defensoria Pública pediu a liberdade e a juíza acatou, pela questão social de ele não ter endereço físico e estar em situação vulnerável. No entanto, ela alertou que se ele fosse autuado novamente seria mandado para o presídio. 

“Em crimes violentos, mais graves, com histórico criminal mais pesado, a tendência é as pessoas ficarem presas. É importante frisar que a audiência de custódia não é feita só pra soltar. Ela tanto solta quanto prende quando há necessidade”, indica. 

Outro fator que pode influenciar nessa tomada de decisão, conforme a titular da Vara de Custódia da Capital cearense, é a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre prisão domiciliar para mulheres grávidas ou com filhos até 12 anos. Ela julga esse parecer “importante para a proteção das crianças”, mas destaca que só abrange crimes não violentos. Delitos com emprego de violência como homicídio ou latrocínio (roubo seguido de morte) não implicarão em mudanças só porque a autuada é mulher. 

A magistrada da 17ª Vara Criminal de Fortaleza recorda ainda que no começo desse modelo de audiência houve críticas, inclusive de instituições públicas, temendo que fosse uma meio de “soltar bandidos” e de “aumentar a criminalidade”: “Não tem nenhum estudo e nenhuma estatística que diga que a audiência de custódia gera aumento de criminalidade”. 

AUMENTO DE AUDIÊNCIAS 

Entre 2022 e 2023, anos nos quais não houve impedimento de realizações por conta da pandemia de Covid-19, as audiências de custódia aumentaram 60%, analisando as estatísticas do CNJ. Foram 12.738 em todo o Ceará há dois anos, enquanto 20.387 foram realizadas no ano passado. 

O aumento nessa estatística, segundo juíza Flávia Setúbal, é um reflexo direto do número de prisões. Quanto mais pessoas são capturadas pelas forças de segurança, mais audiências serão realizadas.  

De acordo com o TJCE, em 2022, somente em Fortaleza, a Vara de Audiência de Custódia fez 4.195 sessões, enquanto no ano de 2023 foram 4.204, divididas entre capturas provenientes de flagrantes e mandados da Justiça. 

Já neste ano, até o último dia 31 de março, dados parciais do TJCE apontam 900 audiências desse número, 796 resultaram em prisão preventiva, prisão domiciliar e aplicação de medidas cautelares, como monitoramento eletrônico e restrições de deslocamento. Em 33 decisões, houve soltura sem aplicação de medidas alternativas. 

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Marcio Sousa

Editor chefe, Radialista profissional e Diretor de Programação da Taperuaba 98,7 FM

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