1,9 mil pacientes com Covid foram transferidos do interior à Capital
De março a outubro, 240 cearenses por mês, em média, precisaram sair de outros municípios para buscar assistência em leitos públicos de Covid-19 em Fortaleza; número expõe necessidade de fortalecer atenção básica
O trânsito de pessoas entre Fortaleza e o interior do Ceará reduziu de forma considerável, desde o início da pandemia, diante das medidas de isolamento social. Porém, um tipo de viagem nunca cessou: a de pacientes vindos de outros municípios para buscar tratamento contra a Covid-19 na capital. Entre março e outubro, foram 1.921 transferências, uma média mensal de 240 infectados pelo novo coronavírus buscando atendimento em leitos públicos específicos.
Os dados são da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), extraídos dos Sistemas UniSUS Web e FastMedic, e mostram ainda que o período no qual se concentrou maior fluxo de transferências foi o pico da pandemia em Fortaleza: em maio, 407 pessoas vieram de outras cidades cearenses à Capital, quantidade que subiu e atingiu pico de 679 transferências no mês seguinte. Só em maio e junho, então, foram 1.086 pacientes deslocados, 56,5% do total registrado até outubro.
Os Hospitais Leonardo Da Vinci, privado e aberto pelo Estado durante a pandemia; Batista Memorial, unidade também privada e com leitos requisitados pela Sesa; e São José, referência no tratamento de doenças infecciosas no Ceará, foram os três que mais receberam esses pacientes transferidos, que chegam, comumente, em veículos do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou em ambulâncias municipais, providenciadas pelas prefeituras, de acordo com a Sesa.
A demanda gerada pela Covid-19 se somou, aliás, a uma já existente – e grande. Em 2019, uma média de 767 pessoas por mês saiu dos municípios de origem para atendimento médico de diversas especialidades em Fortaleza, totalizando 6.140 transferências de janeiro a dezembro.
Já neste ano, nos dois meses de pico pandêmico, por exemplo, 1.499 pacientes vieram do interior à capital cearense: 677 em maio, 822 em junho. No total, então, somando pacientes com coronavírus e com outras patologias, 2.585 foram transferidos apenas no auge de casos da nova virose.
Um deles foi o agricultor aposentado João Malaquias dos Santos, de 83 anos, que lutou para manter o coração funcionando enquanto voava, de helicóptero, de Itapipoca para Fortaleza, uma distância média de 150 km – que se percorrida de ambulância, seria sentença de morte para o doente.
No caminho, o peito parou duas vezes de bombear o sangue, sendo reanimado pelos médicos até chegar ao Hospital do Coração de Messejana (HM), na Capital, como narra a filha do idoso, Rosimeire dos Santos, 34.
Os problemas cardíacos de Malaquias, ela relembra, se agravaram no primeiro semestre deste ano, quando o tratamento precisou ser interrompido diante da pandemia de Covid-19. Com uma crise de dor, falta de ar e tosse somada a ausência de um equipamento de saúde próximo que atendesse às necessidades complexas, o agricultor teve de ser transferido à Capital – processo que, para Rosimeire, foi determinante para o falecimento dele, apenas dois dias depois da internação.
“Ir daqui pra Fortaleza é muito complicado: tem que esperar UTI, vaga em hospital, é uma complicação muito grande. No caso dele, foi até rápido, só que eu acho que era o dia dele de partir mesmo, aquele 28 de junho. Mas com certeza se ele tivesse tido a assistência que ele precisava em Itapipoca, ainda poderia estar com a gente”, opina a filha, afirmando que até hoje não sabe ao certo qual foi a causa da morte do pai: se Covid, se coração ou se as duas coisas, já que “ambas apareciam no laudo”. Questionada, a assessoria do Hospital do Coração de Messejana disse à reportagem que a informação é restrita à família.
Todas as transferências de pacientes vindos de cidades do interior do Ceará para leitos públicos ou custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), conforme a Sesa, “ocorrem por meio do sistema de regulação estadual, sendo que o município de Fortaleza possui um sistema próprio de regulação para as unidades hospitalares municipais e, quando necessário, se integram com o sistema estadual”.
Fortalecimento
Emille Sampaio, mestra em Saúde Pública e professora do curso de Medicina da Universidade Federal do Cariri (UFCA), considera que seria preciso acesso a dados detalhados para entender as motivações e origens dessas transferências, mas garante que elas podem estar ligadas a deficiências estruturais basilares da rede pública.
“Um dos grandes gargalos no SUS, hoje, é a atenção secundária. O paciente às vezes consegue uma consulta no posto, é encaminhado ao especialista, mas demora muito a conseguir. Durante essa espera longa, o problema de saúde pode se agravar, ele precisar da atenção terciária e ser transferido”, observa.
A médica pontua, contudo, que o processo de deslocamento de pacientes entre cidades é comum, faz parte do “itinerário terapêutico” e do funcionamento da rede de saúde. “Não vamos conseguir ter um hospital de grande porte, de atenção terciária, em todos os municípios. Casos mais graves precisam da atenção que está em grandes centros urbanos. A ida a Fortaleza não necessariamente significa que a rede do interior não está organizada”, pondera.
A necessidade de fortalecimento da rede como um todo, inclusive com maior investimento financeiro, frisa Emille, foi ainda mais evidenciada com a chegada da pandemia.
“Outro elemento que influencia nesse cenário é o financiamento: pra fazer com que algo funcione, precisamos ter verba, saber gerir. O que a Covid nos mostrou é que temos que fortalecer ainda mais a atenção primária. Temos municípios com 100% de cobertura, mas outros ainda precisam de muito avanço. E os casos de Covid mais graves vão ser acompanhados na atenção primária e secundária”, finaliza.
O Diário do Nordeste solicitou à Sesa uma entrevista com integrante da Pasta para discutir os principais motivos para a alta quantidade de transferências, quais os impactos disso na rede pública de saúde do Estado, se os procedimentos geram mais custos aos cofres públicos e mais riscos à vida dos pacientes, e, ainda, que estratégias ou ações têm sido adotadas para fortalecer a rede hospitalar no interior. Até o fechamento desta edição, não obtivemos resposta.
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