Prazo de proteção acaba e pelo menos 1,3 mil famílias estão sob ameaça de despejo no CE
Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu as ordens de despejo durante a pandemia não está mais valendo
310 famílias, incluindo crianças, idosos, pessoas com câncer e com deficiência. Este é o cenário na “Terra Prometida: Vítimas da Covid-19”, ocupação num terreno em frente ao Aeroporto de Fortaleza – apenas uma das comunidades que podem ser removidas ou despejadas no Ceará, nos próximos meses.
Isso porque a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu a execução de ordens de despejo e de desocupação de áreas privadas durante a pandemia não está mais valendo, o que ameaça centenas de famílias cearenses.
No Ceará, só entre as acompanhadas por órgão da Assembleia Legislativa, 1.242 famílias estão sob ameaça de despejo e 149 estão com os processos de remoção suspensos. Outras 842 já foram removidas.
O levantamento é do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), órgão da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), e aponta ainda que, dessas famílias, 654 são da zona rural e 301 pertencem a povos originários e comunidades tradicionais do Estado.
Por outro lado, relatório do Panorama dos Conflitos Fundiários no Brasil 2019-2020 aponta que só Fortaleza registrou, nos dois anos, 3.763 famílias ameaçadas de remoção ou removidas dos territórios.
O estudo considera denúncias de casos coletivos, e é produzido pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) em parceria com entes locais, como o Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O número exato e atual de famílias sob risco de ficar sem lugar para morar, porém, é impreciso, já que “muitas são tão vulneráveis que nem chegam a denunciar”. É o que explica Miguel Rodrigues, coordenador do EFTA.
“Há muitas situações que não conseguem chegar até nós. As ocupações coletivas estão espalhadas pela cidade inteira, mas a maioria fica nas áreas periféricas da cidade. Muitos locais coincidem com regiões onde houve mais mortes por Covid”.
Miguel Rodrigues Coordenador do Escritório Frei Tito
‘O destino é a rua’
Em Fortaleza, a “Terra Prometida” do início deste texto é, na verdade, terreno movediço, de onde brota “muita aflição”, como descreve Antonia do Socorro Santos, 56, gestora do local e conhecida pela comunidade como “Mana Liderança”.
“As famílias adoecem, vivem aflitas. Sofremos pressão pra sair. Mas o que falei pro juiz é que se a gente sair daqui, (o destino) é Praça do Ferreira. A rua. É lá onde estão alojadas várias famílias que não têm onde morar”.
‘Mana Liderança’ 56 anos
A ocupação começou a ser formada em agosto de 2021 e “dá prioridade a quem precisa e acredita na luta por moradia”, como Mana faz questão de explicar. “Quem vem pra cá e fica aqui é porque precisa. Temos uma cozinha comunitária, com refeição. A gente acolhe”, diz.
A reintegração de posse ao supermercado dono do terreno deveria ter ocorrido, por determinação judicial, em setembro deste ano, mas foi adiada. Outro despejo previsto para este mês também foi suspenso. Segundo a líder comunitária, a determinação do STF respaldou a decisão.
Órgãos de Justiça devem ‘mediar’ os despejos
Em junho de 2021, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, suspendeu ordens de remoção e despejos de áreas coletivas por seis meses; já que, segundo ele, o desabrigamento agravaria a crise gerada pela Covid-19.
A medida foi prorrogada por 3 vezes, e o último prazo encerrou em 31 de outubro, quando Barroso afirmou que nova extensão não era necessária. Ele determinou, porém, que sejam instaladas comissões para mediar despejos, a fim de “reduzir os impactos humanitários”.
O “regime de transição” ordenado pelo ministro deve seguir os seguintes pontos:
- Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais devem instalar, imediatamente, comissões de conflitos fundiários, que elaborem estratégia para retomar decisões de reintegração de posse suspensas, de maneira gradual e escalonada;
- As comissões devem realizar inspeções judiciais e audiências de mediação antes de qualquer decisão para desocupação, mesmo em locais nos quais já haja decisões que determinem despejos. Ministério Público e Defensoria Pública devem participar;
- Além de decisões judiciais, quaisquer medidas administrativas que resultem em remoções também devem ser avisadas previamente, e as comunidades afetadas devem ser ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas para resguardo do direito à moradia, proibindo a separação de integrantes de uma mesma família.
- Locações individuais não estão inclusas na decisão.
Em nota, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) afirmou que “recebeu, na tarde de quinta-feira (03/11), por Malote Digital, a intimação oficial” do STF sobre a criação da comissão, e que “providências serão adotadas, dentro dos prazos estabelecidos, em relação às ações de despejo”.
Impactos dos despejos coletivos
Para José Lino Fonteles, supervisor do Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública Geral do Ceará, a prioridade agora é “encontrar uma solução para que essas famílias não fiquem sem moradia ou sem proteção”.
O defensor pontua que serão realizadas reuniões com a comissão de órgãos de Justiça, com os moradores das comunidades e com o Poder Público, para decidir o que deve ser feito quando as ordens judiciais de reintegração forem cumpridas.
“O que precisa ocorrer é que essas famílias recebam uma habitação, seja própria, seja por meio do aluguel social. Esse seria o ideal, é a proposta que levaremos a essas reuniões”.
José Lino Fonteles Defensor público supervisor do Núcleo de Habitação
O Programa de Locação Social, em Fortaleza, é gerido pela Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) da prefeitura. À Pasta, a reportagem enviou os seguintes questionamentos:
- O Município tem se preparado para essa demanda?
- Quantas vagas de locação social há hoje? Há perspectiva de ampliar?
- Em relação a moradias, há entregas ou construções planejadas?
- O que pode e deve ser feito a curto e médio prazos diante desse problema?
Em nota, a SDHDS informou que há, hoje, 610 vagas de aluguel social (R$ 420) para a população em situação de rua, das quais “310 já foram efetivadas e 300 estão em fase de implementação, com cadastramento de famílias atendidas nos equipamentos”.
As novas vagas, segundo a Pasta, foram criadas em agosto deste ano, “e fazem parte das ações emergenciais da Prefeitura para a população de rua, que prevêem investimentos de R$ 8,7 milhões (anuais)”. O aluguel social é temporário, válido por 2 anos.
O órgão municipal afirma que estão sendo desenvolvidas novas propostas, por meio da Habitafor, dentre elas “a perspectiva de se investir na experiência de lotes urbanizados e mutirões”.
Ao relembrar a quantidade “oficial” de pessoas em situação de rua em Fortaleza – 2.653, conforme o II Censo Municipal da População de Rua de 2021 –, a SDHDS citou, ainda, as medidas de acolhimento institucional e distribuição de refeições.
Para Miguel Rodrigues, do Escritório Frei Tito, existe uma deficiência grave de políticas públicas de habitação municipais. “Há um déficit habitacional enorme, sem políticas para remediar isso. A consequência é a continuidade do cenário que temos hoje, em que as pessoas vivem em condições precárias”, lamenta.
“Por mais que aconteça o despejo, o que é uma situação traumática e de violação de direitos, as pessoas acabam voltando, porque não têm pra onde ir. Ou vão para situação de rua”, finaliza.
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