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Em três meses, 68 prefeituras do Ceará destinaram mais de R$ 22 milhões a shows de grandes artistas

Investimentos ocorrem em meio a debates sobre a contratação de artistas por valores milionários e a “criminalização” dos investimentos em cultura

Ao longo dos três meses desde que o Governo do Ceará liberou a realização de eventos sem limite de capacidade, as prefeituras cearenses já anunciaram investimentos superiores a R$ 22 milhões com a contratação de shows musicais. Após dois anos de restrições impostas pela pandemia, os municípios voltaram a realizar grandes eventos para comemorar datas como emancipação política, aniversário da cidade e as tradicionais festas juninas. 

Conforme levantamento feito pelo Diário do Nordeste, 68 prefeituras do Ceará divulgaram shows para este ano, totalizando mais de 200 atrações. A reportagem levou em consideração contratos feitos por inexigibilidade de licitação, em todos os 184 municípios do Estado, até o último dia 10 de junho. Ao todo, o montante de investimento chega a R$ 22.047.300, conforme dados colhidos no Portal das Licitações, do Tribunal de Contas do Ceará (TCE).  

Esses investimentos ocorrem em um momento onde a contratação de artistas com projeção nacional por valores milionários têm virado alvo de órgãos de fiscalização. Cantores como Gusttavo Lima e Leonardo, além da dupla Barões da Pisadinha, tiveram espetáculos suspensos na Bahia e em Goiás por decisão da Justiça. 

Para especialistas em administração pública, é preciso ter cautela ao apontar eventuais irregularidades nesse tipo de contratação, sob o risco de “criminalizar” os investimentos em cultura. De acordo com gestores municipais, a promoção desses eventos acelera a economia local após anos de isolamento por conta da pandemia da Covid-19. 

Por outro lado, integrantes de instituições fiscalizadoras denunciam falta de transparência nas escolhas dos artistas e nos contratos. Integrantes do Ministério Público do Ceará (MPCE) apontam ainda que a realização de shows milionários em meio à crise econômica nacional pode ferir a moralidade da administração pública. 

No caso do Ceará, nenhum show foi suspenso no Estado, mas eventos em Acopiara, Forquilha e Iguatu foram alvos de investigação de promotores de Justiça. Segundo o Ministério Público, entre as irregularidades apuradas estavam descumprimento da lei orçamentária e superfaturamento de shows. Os eventos, no entanto, já foram realizados. 

“Tudo passa pela questão de que o povo elege seus representantes e estes têm essa liberdade de fazer a opção política de atender aos interesses do povo, então cabe a esses representantes deliberar quanto será aplicado em saúde e educação, por exemplo, mas sem perder de vista o princípio da razoabilidade. Quando se destina verba para esses shows com a saúde deficiente, está contrariando os interesses do povo” 

Silderlândio do Nascimento Promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Defesa do Patrimônio Público (CAODPP), do MPCE

Para o advogado Reginaldo Vilar, presidente da Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-CE, é preciso avaliar sob “dois aspectos: a legalidade e a necessidade”.

“Pelo aspecto jurídico, não enxergo impedimento, até porque a lei determina as condições para a contratação de artistas. E o cachê depende do valor da obra, não existe ilegalidade em um músico cobrar R$ 700 mil e outro cobrar R$ 20 mil, o aspecto legal da contratação não pode ser confundido com a necessidade e a moralidade”  

Reginaldo Vilar Advogado e presidente da Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-CE

Cidades pequenas x maiores investimentos 

Estão entre os municípios cearenses com os maiores investimentos em shows, cidades pequenas, como Campos Sales e Tamboril. Com arrecadações menores, essas prefeituras fazem shows milionários. Elas conseguem cobrir menos de 3% das despesas anuais com recursos próprios.  

Cidades nessa situação dependem ainda mais de repasses como a cota do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), as transferências do Sistema Único de Saúde (SUS) e a cota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que irá sofrer redução nos repasses devido ao teto de 17% no valor da tributação, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) na última quinta-feira (23).  

Em Campos Sales, por exemplo, o Camp Fest, a ser realizado em julho, recebeu investimento de R$ 1,4 milhão só na contratação de artistas. Esse valor é equivalente a mais de 64% da arrecadação tributária do município no ano passado, que chegou a R$ 2,3 milhões. A cidade terá, entre as atrações, Nattan, Limão com Mel e Felipe Araújo.

Em Tamboril, o Tamboril Fest tem contratos avaliados em R$ 1,2 milhão. Ao longo do ano passado, o município arrecadou R$ 2 milhões em tributos. Para a festa deste ano, prevista para o início de julho, as atrações incluem Lagosta Bronzeada, Nattan, Zé Vaqueiro, Zé Cantor, Noda de Cajú e Bell Marques. 

Contrato fechado 

Nos contratos, as prefeituras justificaram que tais eventos são tradicionais nos municípios e atraem multidões justamente pela relevância dos artistas contratados. Os eventos, apontam as gestões municipais, movimentam a economia local, fomentam empregos, aumentam o fluxo na rede hoteleira e gastronômica.  

Nos documentos publicados no Portal do TCE, os municípios listam ainda notas fiscais de outros shows realizados pelos artistas e pelas bandas para o setor privado. A medida é uma forma de justificar os valores cobrados e comprovar que não há superfaturamento. Os contratos indicam ainda a origem dos recursos usados para financiar os shows, normalmente vinculados às secretarias de Turismo e Cultura. 

No início do mês, a Prefeitura de São Gonçalo do Amarante, que liderava os valores empregados com atrações artísticas no Ceará, decidiu cancelar as festividades de São João marcadas para os dias 29 e 30 de junho, 1º, 2 e 3 de julho. O motivo alegado pelo prefeito Marcelo Teles (Pros) foi por conta da situação das chuvas na cidade. O evento teria atrações de renome como os cantores Wesley Safadão, Zé Vaqueiro e Taty Girl. 

Dentro das regras 

A liberação de eventos sem limite de público foi anunciada no último dia 4 de março pelo então governador Camilo Santana (PT). Menos de uma semana depois, em 10 de março, a Prefeitura de Santana do Acaraú realizou um show da banda Painel de Controle para um evento agropecuário local. Desde então, os eventos se multiplicaram. Em março, foram 12 shows. No mês seguinte, chegou a 22. Em maio, foram 46 atrações. Em junho, um recorde, 53. A expectativa é de que em julho esse número cresça ainda mais, chegando a 57. 

No caso desses shows, a contratação ocorre por meio de inexigibilidade de licitação, um procedimento adotado para quando não é possível haver concorrência licitatória e a intenção do ente público é contratar serviços que são realizados de forma singular, apenas por uma pessoa ou empresa. Essa modalidade é prevista na Lei Federal nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos). 

Quem explica essas regras é Ricardo Dias, assessor de Instruções de Cautelares do Tribunal de Contas do Ceará (TCE), instituição responsável por fazer um pente fino nesses e em outros contratos públicos para prevenir ilegalidades. 

“A contratação de profissionais artistas tem um processo mais simples, em que se define a banda ou o músico, mas segue um roteiro. Tem que ter parecer jurídico, projeto básico, informações sobre o evento, tempo de duração e os valores”  

Ricardo Dias Assessor de Instruções de Cautelares do Tribunal de Contas do Ceará (TCE)

Também é preciso justificar a escolha, no caso, do artista ou da banda. A empresa responsável pelo músico deve apresentar justificativa para o valor cobrado e o poder público precisa justificar a origem dos recursos. “O artista sempre deve comprovar que o preço cobrado ao ente público é o mesmo que ele pratica no mercado, esse é inclusive um critério nosso de checagem, sempre olhamos se há essa adequação com a iniciativa privada”, revela Dias. 

“Não faz sentido ter um preço diferente, até porque, caso o município não pague, o gestor pode ser penalizado”, acrescenta.  

É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial […] para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública. 

Lei 8.666/1993 Art. 25

Festejos tradicionais 

Conforme o levantamento realizado pelo Diário do Nordeste, o que mais motiva os eventos são festas de emancipação municipal. Festejos juninos, tradicionais principalmente no Nordeste, também estão entre as principais justificativas. Eventos municipais previstos no calendário oficial, como a Festa do Pau da Bandeira, em Barbalha, o São João de Maracanaú, o Camp Fest, em Campos Sales, e o Tamboril Fest, em Tamboril, lideram os eventos com mais atrações.

Já os valores das contratações variam, indo de cifras próximas a R$ 10 mil, como os cachês dos artistas locais Luiz Fidelis, Joquinha Gonzaga e Fábio Carneirinho, a cachês mais altos, como os shows com Gusttavo Lima, em Iguatu, a um custo de R$ 604 mil, e de apresentações de Wesley Safadão em Maracanaú e Acopiada, contratado por R$ 600 mil em cada cidade. 

O promotor de Justiça Silderlândio do Nascimento reconhece que não há ilegalidade na realização de shows, desde que todo o tramite da contratação seja seguido, os valores de contrato com o ente público sejam os mesmos adotados para shows privados e os recursos estejam previstos no orçamento do município.  

“Temos até um caso no Ceará em que a despesa não estava prevista no orçamento e o prefeito fez uma transposição de recursos por decreto, isso é ilegal, porque, neste caso, ele está tirando recursos diretamente de outra área, da saúde, para um evento cultural. Em uma situação como essa, o promotor intervém”, afirma. 

“Também não é razoável que um município gaste milhões quando se percebe claramente a precariedade do serviço de saúde e da educação. Quando não se é observado o mínimo de razoabilidade da gestão, é possível que o Ministério Público atue”

Silderlândio do Nascimento

Promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Defesa do Patrimônio Público (CAODPP), do MPCE

É com base nesses princípios, aponta o promotor, que shows foram suspensos pela Justiça em municípios da Bahia e de Goiás. “Eram shows milionários em pequenas cidades, de até 20 mil pessoas, onde o orçamento, que já era reduzido, seria sacrificado para a realização de um evento”, afirma. 

Criminalização da cultura? 

Para o advogado Reginaldo Vilar, presidente da Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-CE, é preciso ter cautela ao avaliar tanto os valores dos cachês quanto os cancelamentos para não haver uma “demonização” da cultura.

“O que se pode questionar é o porquê de uma cidade pobre não tenha médico, saneamento e boa educação, por exemplo, mas questionar o cachê do artista, o valor a ser pago, é de uma temeridade enorme, porque é o valor da arte, esse valor não é dado por quem compra, mas por quem vende”, afirma.  

De acordo com Vilar, é preciso também levar em conta o retorno financeiro desses shows e o quanto eles podem fomentar a economia local. “O valor é caro ou barato dentro de um referencial. Uma Expocrato, por exemplo, tem atrações nacionais e atrai turistas do Brasil todo. Se não tiver esses artistas, não tem turista e não tem retorno financeiro”, argumenta. 

“Dizer que vai cancelar um show porque o município deveria ter investido em saúde ou educação é perigoso, porque essas são obrigações da Prefeitura. Não se pode criminalizar uma ação legal por uma omissão. E outra, esses recursos (dos shows) são disponibilizados no orçamento para isso, já é previsto”

Reginaldo Vilar

Advogado e presidente da Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-CE

Para o advogado, essas tentativas de cancelar shows e as críticas direcionadas aos cachês dos profissionais acabam levando a uma “criminalização” dos espetáculos. “Deu-se um aspecto de que qualquer contratação é ilegal, que a atitude do cantor é ilegal, e passou-se a penalizar os artistas”, diz. 

Ele aponta que cabe aos órgãos de fiscalização buscar possíveis irregularidades nos contratos, mas não cabe questionar os valores cobrados pelos artistas. 

“Nem tudo que é legal também é moral. É preciso ver o momento festivo e também avaliar as dificuldades do município. Quando uma prefeitura deixa de honrar seus compromissos ela é penalizada por si só. Agora, questionar se um cachê é caro ou barato exige muito critério, não de forma aleatória”, finaliza. 

Fiscalização 

Na hora de fiscalizar tais contratos, integrantes do MPCE e do TCE buscam indícios comuns de irregularidades. Conforme aponta o assessor do Tribunal, Ricardo Dias, o valor dos shows é o que é mais observado pela instituição.  

“Estabelecemos uma matriz de risco para a auditoria, então todo ano avaliamos os processos mais relevantes, vemos a materialidade e os riscos. O Tribunal também age por denúncia ou representação, qualquer cidadão pode denunciar. Neste caso dos shows, um critério muito observado é o valor praticado, se for muito discrepante de uma cidade para outra isso chama nossa atenção”, revela.

Já o promotor de Justiça aponta que outro fator importante a se observar é se o show faz parte de festejos tradicionais do município ou se é um evento criado pela nova gestão. Ele revela ainda que a fiscalização observa os valores, para prevenir superfaturamento, e a origem dos recursos.

Ricardo Dias também pondera que há outras formas de contratação que podem ser praticadas pelas prefeituras. “Há outras formas, sim, mas não são tão comuns. Tem o credenciamento, por exemplo, que é uma inexigibilidade às avessas. Na inexigibilidade, a prefeitura define aquele artista, já no credenciamento, você abre para qualquer artista que atenda a determinadas condições”, afirma.  

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Marcio Sousa

Editor chefe, Radialista profissional e Diretor de Programação da Taperuaba 98,7 FM

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