De moto, barco e a pé: a saga dos vacinadores para imunizar idosos contra a Covid no interior do CE
O Ceará vacinou mais de 860 mil pessoas. Por trás desse número estão nomes como o de Jessivânia, Estênio, Kamila, Cleideana e outros vacinadores que enfrentam vários obstáculos para imunizar os idosos nas zonas rurais
A força da obstinação quando bem catalisada é capaz de transpor barreiras e de pulverizar obstáculos, por mais complexos que sejam. No interior do Ceará, uma legião de profissionais da saúde tem sido prova disso. Dia após dia eles superam as adversidades em prol de uma causa maior: a imunização contra a Covid-19.
O Estado vacinou mais de 860 mil pessoas. No entanto, por trás desse número que sintetiza a esperança, estão nomes como o de Jessivânia, Estênio, Kamila, Cleideana e tantos outros vacinadores que percorrem os mais longínquos lugares para imunizar os idosos nas zonas rurais.
Esse percurso nem sempre é feito de carro. O primeiro semestre do ano marca o período das chuvas no Estado, época em que rios transbordam, estradas ficam intransitáveis e até pontes caem, como aconteceu na localidade do Sítio Grutas, zona rural de Abaiara. “A falta de acesso não iria me impedir de seguir minha missão”, conta orgulhosa a enfermeira Jessivânia Rodrigues Silva, de 27 anos.
A profissional conta que “não pensou duas vezes” quando se deparou com a estrada destruída. Ela e sua equipe – composta por uma técnica da saúde e uma agente comunitária – trocaram o carro por duas motos e seguiram caminho. “É perigoso, estamos sujeitas a cair. Tem muita lama e pedras soltas. O acesso é bem difícil, mas nada disso nos impediu”, revela parte da sua saga para conseguir imunizar os idosos do Sítio Grutas.
Enquanto Jessivânia pilotava a moto, a agente Cristiane Matias levava, no ombro, a caixa térmica com os tão esperados imunizantes. Mais à frente, as posições se invertiam, de modo que Cristiane, Jessivânia e Cícera Braz revessassem a árdua missão. “É muito cansativo. No fim do dia estamos bem cansadas e com o corpo dolorida. Eu, particularmente, já estou cheia de hematomas, mas não ligo, vamos seguir até imunizar todo mundo”, acrescenta a enfermeira coordenadora da equipe.
Reconhecimento
A recompensa de tamanho esforço chega a conta-gotas. Nesse aspecto, dosar o carinho recebido tem servido para manter o corpo e alma acalentados por mais tempo. A cada vacina aplicada, o olhar do imunizado expressa a gratidão às profissionais. Jessivânia conta que esse é o combustível que as fazem ir além. “Não existe coisa mais gratificante do que chegar na casa deles e ver a alegria estampada nos olhos. Dá para ver a esperança no olhar de cada um. São gestos aparentemente simples e pequenos, mas que a gente vai somando um atrás do outro e nos deixa mais fortes”.
Com as energias recarregadas, é hora de seguir. Pela frente há tantos outros obstáculos a superar. A equipe conta que, para chegar em algumas localidades de Abaiara, “são mais 50 minutos de moto”. Em condições normais, com a ponte intacta, um carro faria igual percurso em menos de 20 minutos. “Saber que estamos fazendo o bem é o que importa, todas as dores desaparecerem”, conclui. De acordo com a Secretaria da Saúde do Estado, Abaiara já vacinou 1.198 pessoas.
“Não passava nenhum veículo, a gente atravessou a pé”
O enfermeiro Estênio Melo Araújo, de 41 anos, não pôde usar carro nem moto. Com a cheia do rio que corta a comunidade Valente, na zona rural de Crateús, o profissional, que há dois anos atua em Crateús, teve que atravessar a pé para chegar à casa de dois idosos com locomoção reduzida.
Com água pouco abaixo do joelho e a caixa térmica no alto, por sobre o ombro, Estênio seguiu a passos lentos e cuidadosos por 100 metros até chegar à outra margem do rio. “Choveu muito de terça-feira para quarta (dia 24), não tinha outra saída, como não passava nenhum veículo, a gente atravessou a pé e se tiver que atravessar outros, farei novamente”, conta o enfermeiro.
Estênio avalia que “a única forma de superar a pandemia é com a imunização em massa”. Com este pensamento e em posse dos imunizantes, ele brinca que nada vai o deter. “Vou aonde quer que seja, vamos vencer essa pandemia”, diz ao confessar que embora os sorrisos dos idosos estejam ocultados pelas máscaras de proteção, o agradecimento vem através dos olhares.
“Alguns deles sem emocionam e chegam a chorar. A gente absorve e usa isso como uma força para continuar ultrapassando os obstáculos”, diz Estênio. Crateús já imunizou, segundo dados da Sesa, 10.644 pessoas.
“Deus te abençoe e te aguarde”
A enfermeira Kamila Alves Ferreira Bezerra, de 33 anos, nas últimas semanas passou a percorrer a pé o Sítio Lagoa Seca, na zona rural de Várzea Alegre, para vacinar os idosos contra o novo coronavírus. As chuvas caídas no Sul do Estado danificaram algumas estradas carroçáveis e o único meio de chegar até às residências é andando.
O carro da equipe – composta por ela, por uma técnica de enfermagem, a Jailma Maria, e pelo motorista – estaciona em um determinado lugar e as profissionais iniciam uma caminha de cinco, dez e até vinte minutos. O cansaço, reconhece Kamila, é grande, mas não sobrepõe “seu ideal”.
A enfermeira revela que a pandemia desenvolveu ainda mais o sentimento altruísta, de “acolher e cuidar do próximo”. Ela faz questão de destacar que “não seria uma estrada danificada que me faria desistir desse ideal”. Nesse mês, a dupla vacinou o idoso Joaquim Belarmino Neto de 88 anos. Ao fim do processo, veio a frase que se tornou comum no dia a dia das profissionais. “Que Deus te abençoe e te aguarde”, agradeceu Joaquim.
Kamila diz que essa tem sido a mensagem repetida em comunhão pelos idosos vacinados. Frase que se tornou uma espécie de mantra. “Ouvir esse desejo de proteção faz bem. Esses idosos sabem que estamos muito expostas, mas também reconhecem nosso esforço. E às vezes dizem isso só com um sorriso, com a alegria da vacina. Esses atos têm nos dado forças para seguir praticando o amor ao próximo”, considera. Várzea Alegre já vacinou 3.400 pessoas. Os dados são da Sesa.
“Vamos de canoa, não podemos parar”
Nem mesmo quando dirigir e caminhar são opções viáveis a vacinação não é interrompida. Em Potengi, a equipe de vacinadoras venceu “o medo” para dar continuidade ao processo de imunização contra a Covid-19. Bem humorada, a farmacêutica Luíza Mayanne Evangelista Rodrigues, 32, conta que nunca antes pensou que pudesse vacinar alguém em uma canoa. Mas, quando essa foi a única opção que restou ao grupo, ninguém pensou duas vezes.
“Vamos de canoa mesmo, não podemos parar a vacinação”, disse Luíza, que também é coordenadora de Atenção Básica e Imunização do Município. Com auxílio do canoeiro Jacó Oliveira, a farmacêutica e a agente de saúde, Eliane Oliveira da Silva, atravessaram o açude na localidade de Alecrim e foram ao encontro do idoso Francisco Alves Freire, de 70 anos. “Tive medo”, confessa Luíza, “mas fui, nossa missão é maior que nossos medos”, pondera.
Os obstáculos enfrentados pelas equipes de vacinação da zona rural de Pontengi vão além de atravessar açudes em canoas. Luíza explica que, assim como muitas cidades do interior, o período da quadra chuvosa tem danificado estradas, tornando a vacinação missão “complicada”. Por dia, a equipe percorre cerca de 50 km. “A maior parte é de carro, mas em muitos trechos a gente tem que ir a pé, debaixo de sol ou chuva, e de moto, quando a estrada está muito ruim’, acrescenta.
A farmacêutica reverência a luta de “todas as profissionais da saúde que estão empenhadas em ajudar a vencer o vírus, através da vacinação”, mas pede que a população também faça sua parte, cumprindo as deteminações sanitárias. Potengi já vacinou, até agora, 965 pessoas, conforme a Sesa.
Dor transformada em luta
Quando a chuva começou a cair, ainda no início da manhã desta quinta (25), na cidade de Palmácia, a enfermeira Cleideana Lourenço Fontes, 36, sabia que teria pela frente mais de um dia exaustivo. Sua área de atuação é na zona rural, em comunidades que, quando chove, o acesso passa a ser exclusivamente feito a pé.
A caminhada não é curta. Por dia, são mais de 5 km percorridos. Na quinta-feira, especificamente, a profissional andou 9km para imunizar sete idosos. Pedras, lama, subida íngreme e travessia de um rio. Esses foram alguns dos obstáculos enfrentados por Cleideana. “Cansada?”, pergunto. A resposta é direta e firme: “Sim, bastante, mas muito satisfeita”.
A satisfação a qual se refere advém de um ativo imaterial. Não pode ser tocada, mas pode ser sentida. “É algo que não sei explicar, só sentir. Quando vejo o idoso vacinado, sorrindo para mim como quem diz: ’vou viver mais tempo’, é reconfortante. É um gás extra, é a força que a gente precisa”, conta. Os idosos imunizados quinta-feira (25) residem do Sítio Buenos Aires, local onde Cleide “nasceu e se criou”, conforme faz questão de ressaltar.
Voltar ao seu local de origem confere um sentimento ainda mais especial. “Ajudar o próximo é uma benção. E quando essas pessoas são do nosso convívio é especial. Todos esses idosos eu conheço, cresci ao lado deles, estão me sinto muito feliz por trazer essa vacina, que para eles significa esperança, uma vitória”.
Essa vitória infelizmente não foi alcançada por seu tio. No fim do ano passado ele morreu vítima da Covid-19, aos 82 anos. A enfermeira conta que a dor do luto foi ressignificada. “Senti ainda mais necessidade de lutar, de imunizar quantos idosos eu conseguisse”.
Essa obstinação tem um preço. Além do cansaço físico, Cleide aponta o cansaço mental, dela e de outras colegas de profissão. “É muito difícil. Algumas vezes a gente tem que recorrer à psicóloga, é uma carga muito grande. Mas, que não lamento. Me sinto honrada de poder ajudar, te levar a esperança a tantas pessoas”, conclui. Palmácia já vacinou 977 pessoas, segundo a Sesa.
Desgate emocial
A psicóloga Ana Carina Rodrigues Gois destaca que além do cansaço físico presente nesses profissionais que lidam diariamente com tamanho esforço, há o desgate emocial. Mesmo eles sendo capacitados para lidar com a dor e o sofrimento do outro em processo de adoecimento, explica Carina, “o momento que estamos vivenciando é delicado e diferente também para os profissionais de saúde”.
A profissional pondera que diante deste cenário, “torna-se importantíssima a busca por suporte psicológico”. Nesse processo psicoterapêutico, acrescenta Carina, “o profissional da saúde encontra acolhimento e espaço para elaborar seu sofrimento e para buscar estratégias para lidar com as dificuldades do período da pandemia”.
Assim como ressaltado pela enfermeira Cleideana, que extraiu forças na morte do seu tio, Carina Rodrigues lembra que “no próprio trabalho desses profissionais da saúde é possível ressignificar a dor e auxiliar o próximo”. Contudo, a psicóloga ressalta a importante de buscar formas saudáveis, sem “romantizar escalas extensas de trabalho e doação exclusiva ao serviço”. “Temos que ter um olhar cuidadoso também para quem cuida, ofertando suporte, compreendendo a importância do descanso, das pausas e dos momentos de lazer”, conclui a psicóloga Ana Carina Gois.
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