Número de meninas mortas em 2020 é 91% maior do que 2019 no Ceará
De janeiro a outubro, o Estado registrou quase o dobro de homicídios de adolescentes, na faixa etária entre 0 e 17 anos, do que o registrado em igual período de 2019. Vulnerabilidade social está entre causas, aponta especialista
Há dois meses a pequena Amanda, de quatro anos de idade, foi atingida por disparos de um grupo armado na Comunidade do Caroço, próximo ao bairro Praia do Futuro, em Fortaleza. A criança estava com a mãe, que também foi atingida pela arma de fogo. Semanas depois, Amara, uma adolescente de 13 anos, perdeu a vida após invasão armada na casa em que mora, no bairro Planalto Ayrton Senna também na Capital. O ex-namorado da jovem é o principal suspeito.
Apesar dos nomes que abrem esta reportagem serem fictícios, as mortes são reais e aconteceram em 2020. Amanda e Amara estão entre as 44 garotas menores de idades vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) entre janeiro e outubro deste ano – 91,3% a mais do que o acumulado em igual período de 2019, quando 23 garotas entre 0 e 17 anos foram vitimadas em território cearense.
Os dados são das planilhas estatísticas de CVLI, publicadas mensalmente pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). A Pasta considera como CVLIs os crimes de homicídio doloso, feminicídio, lesão corporal seguida de morte e roubo seguido de morte.
Ser mulher
São as meninas com idade acima dos 15 anos as mais vulneráveis. Das 44 mortes notificadas em 2020, 28 foram de garotas nesse perfil. É uma incidência 75% maior do que o registrado em 2019 quando 16 meninas perderam a vida. Em mais da metade dos ataques, armas de fogo foram usadas pelos agressores: pelo menos 28 meninas morreram por conta de disparos em 2020. A quantia corresponde a 63% dos casos. Em números absolutos, o valor é 57% maior do que registrado até outubro de 2019. Na época, 16 meninas foram assassinadas a tiros, o que corresponde a 69% das notificações naquele ano.
Por trás da elevação, questões sociais que passam por gênero e pelo contexto de violência urbana. A quantidade de crimes com arma de fogo, defende a socióloga Camila Holanda, evidencia a vulnerabilidade da mulher nessa cena – principalmente quando consideramos que os atacantes são parceiros afetivos das vítimas.
“O ano de 2020 foi um ano marcado pelo conflito entre as organizações criminosas, que terminam atraindo essa juventude. Dentro disso, a gente vive em um momento onde um discurso autoritário contra os corpos femininos está muito legitimado. O feminicídio não é só crime relacionado à violência doméstica. É também uma relação de poder”, reforça Camila Holanda, consultora de pesquisa do Comitê de Prevenção e Combate à Violência, da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alce).
Apesar disso, a especificação ainda é pouco utilizada pela SSPDS: dos 44 crimes contra meninas registrados em 2020, apenas a morte de uma jovem de 17 anos foi reconhecida como feminicídio. Em 2019, três mortes dessa natureza foram notificadas – uma delas contra uma criança de dois anos de idade.
Inseridos nas disputas por territorialidade, os mais novos estão mais sujeitos à violência enquanto se apropriam da cidade. “São pessoas muito jovens que estão construindo seus projetos de vida e transitam pelas ruas do seu bairro. São os jovens que estão nas pracinhas, nos seus pontos de lazer”, considera Camila, que também acredita na força das políticas públicas e atenção à juventude como saída para redução dos casos. “A escola não é um lugar que agrega, o mercado de trabalho é voltado para informalidade. Isso é promotor de insegurança. É uma geração que está em busca de construir projetos de futuros que estejam alinhados com seus desejos. É preciso pensar políticas mais amplas para juventude. O poder público precisa atuar nesses lugares, abrindo as escolas para outras atividades de lazer”, reforça Camila.
Vulneráveis
Em paralelo às ocorrências, há uma generalização sobre as vítimas que precisa ser rompida: a de que todas as mortes estão relacionadas com a ilegalidade, como explica a defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Ceará (DPCE). “Há um processo de criminalização da própria vítima”, destaca. “É preciso todo um trabalho para não permitir, desde a hora do inquérito, que nem as vítimas nem as famílias sejam criminalizadas”.
Mariana é uma das coordenadoras da Rede Acolhe, célula da defensoria que recebe familiares de vítimas de homicídio no Ceará. Parte das meninas vitimadas compartilham algo em comum: a premeditação do crime. “O que a gente observa é que de acordo com as famílias, mais da metade dos casos receberam ameaças antes de virar vítimas”, recorta Mariana. Nas estimativas da Rede, foram 192 atendimentos relacionados à violência contra mulheres e meninas desde o surgimento do projeto em 2017. Deste total, 11 tiveram como vítimas meninas entre 0 e 19 anos.
Uma confluência de delicadezas, pontua a defensora, que poderiam ser atenuadas por outras formas de lidar com a violência.
“A gente acha que a resposta é a investigação e a responsabilização. Tem que ocorrer mas não tem que existirem sozinhas. É preciso investir em políticas sociais. De trabalho, de emprego, claro, mas também da presença do Estado em bairros de menor IDH. Seja com uma política de saúde, seja com uma política educacional”.
“É importante que seja dito que elas não morreram porque buscaram essa morte”, complementa Camila Holanda. “Essas jovens vivem em territórios de conflito. Nas duas grandes chacinas que aconteceram no Ceará, da Messejana e das Cajazeiras, as vítimas não tinham ligação entre si. Elas estavam em lugares de conflito. As meninas estão ali, também”, considera.
Fiscalização
Procurada sobre o aumento dos CVLIs entre adolescentes do sexo feminino, a SSPDS respondeu que reforçou ações para evitar os crimes violentos contra a vida e enumera a criação do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV) da Polícia Civil, bem como a ampliação do número de delegacias do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), de cinco para 11 ainda em 2017.
Nas unidades da DHPP, os casos cujas vítimas são crianças e adolescentes são prioridade, garante a Pasta. A SSPDS salienta a ampliação do trabalho de investigação nas delegacias de todo o Estado, o que deu ainda mais capilaridade à Polícia Judiciária cearense. Nos últimos seis anos, o número de delegacias 24 horas no Ceará mais que dobrou, passando de 13 para 32 unidades plantonistas. A polícia investigativa atua em locais com maior índice de criminalidade. “A presença permanente da Polícia nos territórios têm o objetivo de neutralizar a ação de grupos criminosos e construir uma relação de confiança junto aos moradores”.
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